Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Macau - Obra revela presença da Inquisição em Macau que passou ao lado da historiografia



O investigador Miguel Rodrigues Lourenço dedicou anos a juntar peças de um ‘puzzle’ que, porventura, nunca ficará completo. Da pesquisa aturada, vertida em livro, saiu, porém, um novo contributo para a História: a Inquisição actuou em Macau via Goa.

“A Articulação da Periferia: Macau e a Inquisição de Goa (c. 1582- c. 1650)”, obra recentemente distinguida pela Academia Portuguesa da História (na categoria de História da Presença de Portugal no Mundo), debruça-se sobre a “não questão” aos olhos da historiografia da actuação do Santo Ofício em Macau, dado como “um espaço de impermeabilidade” e “um porto seguro” para cristãos-novos.

O trabalho do investigador do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa vem preencher um vazio sobre a actuação do Santo Ofício no antigo enclave português, acabando por contestar, em certa medida, com recurso a documentação nova, a tese instalada, demonstrando como se estenderam a Macau, através de Goa, os tentáculos da Inquisição.

“A experiência do Santo Ofício em Macau era uma não-questão para a historiografia, um pouco influenciada por autores como Charles Boxer, sendo a percepção geral a de que Macau teria permanecido amplamente à margem daquilo que se chama actividade inquisitorial, que seria de certa forma imune”, pelo que “o contributo mais interessante é o de que as coisas talvez não devam ser olhadas assim”, explica à agência Lusa.

Isto porque, apesar de “ser, em grande medida, um espaço de refúgio para os cristãos-novos, a verdade é que há casos de processados – embora sem a mesma expressão numérica de Goa ou Cochim, por exemplo – e, quando analisamos a documentação, verificamos que sempre que a inquisição de Goa emitiu uma ordem ela foi executada em Macau”.

O investigador observa, porém, que “a Inquisição é um vínculo que se pode dizer familiar nos séculos XVI e XVII, no contexto da Coroa e seus domínios, pelo que o facto de Macau ter tido uma experiência com o Santo Ofício não é uma coisa assim aberrante”.

“Se era um paraíso para cristãos-novos, não era porque a Inquisição não era capaz de intervir, mas por outros factores que terão muito que ver com a sua importância no contexto mercantil do Estado da Índia”, sustenta, explicando que tal fez, por exemplo, com que “não fosse conveniente” lançar uma visitação – momento em que o inquisidor sai da sua sede de distrito para qualquer território sob sua jurisdição para fazer averiguações no terreno.

“Isso não acontece em Macau apesar de ordenado desde Lisboa em grande medida por haver um bloqueio do governador do Estado da Índia para que não vá avante”, diz, salientando que tratar-se-á do “aspecto que mais mostra que, no contexto do Estado da Índia, houve limites à presença da Inquisição em Macau”, mas que esses limites não a invalidaram.



“Macau teve durante todo o período de vigência da inquisição de Goa e, sobretudo a partir da morte de D. Leonardo de Sá [bispo da China], uma experiência regular – atrevo-me a dizer normalizada – apesar das tensões da primeira metade do século XVII” entre as ordens religiosas no seio das quais eram nomeados os comissários do Santo Ofício, sublinha.

Em causa, os “três cismas de Macau” ou “três violentas controvérsias de precedências jurisdicionais que chegaram ao extremo de levar, por exemplo, a que, em 1642, o capitão-geral de Macau, que apoiava a facção da Companhia de Jesus, tivesse apontado ao Convento de Santo Agostinho os canhões do Forte de S. Paulo”.

O Santo Ofício tinha uma série de tribunais, com o de Goa a figurar como o único com sede fora do Reino, com a sua área de jurisdição, sobre território descontínuo, a abarcar Macau que, “a partir de certa altura, passa a ter comissários residentes e a funcionar em permanência”, contextualiza.

Leonardo de Sá constitui uma “excepção no contexto da inquisição de Goa”, dado que “chega ao Estado da Índia com uma comissão inquisitorial passada diretamente pelo inquisidor geral para ser exercida apenas sobre aqueles que se tinham convertido recentemente à fé católica”, “causando desconforto entre os inquisidores de Goa”.

“Há queixas de que abusa da sua comissão e que se atreve a julgar aqueles que estavam fora da sua comissão, os portugueses, cuja jurisdição pertenceria então à inquisição de Goa”, pelo que, quando morre, esta “passa a enviar comissões para serem executadas em Macau”, isto dentro do que se pode saber pois o arquivo da inquisição de Goa foi destruído no século XIX.

Também é por essa razão que, “durante muito tempo, a inquisição de Goa foi o parente pobre dos estudos inquisitoriais em Portugal porque há uma tradição de se estudar a partir dos processos”, explica, dando conta de que, no caso de Macau, só dispõe de um único completo.

Soma-se a isso “um repertório das causas seguidas pelo tribunal de Goa até 1623 e listas de autos de fé, que não estão completas, mas que dão acesso a algumas informações relativas a Macau”. “De resto, fui encontrar em correspondência menções a casos, mas a informação em termos das vítimas, dos processados, é muito fragmentária e há coisas que de facto nunca saberemos”, reconhece. In “Ponto Final” - Macau

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